QUIET LONELINESS/SERENAS SOLIDÕES
EXHIBITION, BALTAZAR DIAS THEATRE, FUNCHAL, APRIL 2006
À Ana,
A aliteração do título – “Serenas Solidões” – quadra-se com as imagens. Há estruturas que se repetem ritmicamente, como numa pauta musical: as hélices e as paralelas, as vitrinas, as escadas íngremes. Ana Gaiaz responde à textura das coisas – das pedras velhas à madeira pintada e ao celofane dos sudários de boneca. A fotografia, que é uma superfície (uma folha de papel), presta-se à expressão de tal riqueza táctil. Não basta olhar para estas fotos; é preciso pegar nelas. Fotografia e escultura são irmãs-gémeas, definidas pela luz – ou não fossem os seus praticantes companheiros de aventura, isto é, imaginários.
Mme de Staël julgava que o progresso do espírito humano se fazia em espiral, mas hoje sabe-se que a informação e a evolução são helicoidais, como a estrutura do ADN. A espiral alarga-se: a hélice ascende. “Mais alto”, parece ser o lema destas imagens. À vertigem vorticista, Ana Gaiaz prefere o repto da ascensão, degrau a degrau. No patamar do topo, há esferas abandonadas – essa superfície perfeita, finita mas ilimitada, sem princípio nem fim.
Fotografar é arrumar e classificar. A série de bonecas é uma colecção de olhares espantados com o mundo. São crianças por nascer num conto de fadas. As imagens de Ana Gaiaz estão prenhes de memórias mas vazias de gente. As excepções – por puras razões geométricas – são as fotografias de Veneza. Por exemplo, a do gondoleiro que se dobra no plano perpendicular ao perfil encurvado do barco. Ou a da fila de transeuntes na passerelle duma Praça de São Marcos alagada – barreira humana em contraponto à fachada modulada do palácio. Há ecos das janelas nos arcos palafíticos da estrutura.
Entre as minhas preferidas estão duas imagens singulares, estranhas a qualquer teoria. Uma, a do focinho do porco no gargalo das pedras ancestrais; a outra, a do trio de cadeiras sedentárias, segregadas dos carros da nossa mobilidade. Na primeira, gosto daquele olhito, vulnerável e curioso; na segunda, admiro a árvore central, de braços bem abertos, pronta a congregar os elementos mais antagónicos. Por estas e pelas outras fotografias lhe estou grato.
Jorge Calado, Março 2006
Solidão – da dor à tranquilidade
As fotografias de Ana Gaiaz evidenciam um elevado grau de contemplação e enunciam a profunda paz interior de quem deambula de olhar atento e sensitivo pelos espaços que percorre. Com excepção das imagens de Veneza, todas as fotografias estão despidas da presença humana, como que a sublinhar o título atribuído ao conjunto: “Serenas solidões”. Semanticamente, este título remete-nos para um sentimento consentido que pode mergulhar na dor ou na tranquilidade. A dor que podemos encontrar personificada nas expressões das imagens de santos que a vontade humana submeteu à maquilhagem do restauro. Contudo, o imenso âmbito simbólico destas imagens pode remeter o nosso imaginário para as mais diversas viagens. Desde o lado mais espiritual da devoção, à expressão mais tétrica da morte, simbolizada nas etiquetas de identificação que nos recordam defuntos na morgue. Voluntária ou involuntariamente, a presença destas imagens encaminha-nos ainda para o questionamento da obra de arte – a peça de culto religioso que altera o seu estatuto com a entrada no museu, transformação tão explorada em propostas estéticas da pós-modernidade. Estas imagens estão prenhes de simbologias e arquétipos. As bonecas da vitrina, outrora objectos de jogo, e propulsoras da imaginação, transformaram-se agora em peças de colecção, ao mesmo tempo que nos podem remeter para o universo da História da Fotografia em que, particularmente no período surrealista, uma multiplicidade de autores as incluiu nas suas construções fotográficas.
Encontramos ainda o bucólico das paisagens, algumas habitadas pela rusticidade das formas, cuidadosamente compostas em jogos de luz e sombra, onde perdura a memória dos tempos e as vivências passadas.
Do conjunto destas fotografias, formalmente distintas, emerge um vasto conjunto de sensações que (podemos efabular) serviram para exorcizar a amarga solidão vivida pela autora, enquanto que para o espectador servem para alimentar o deleite do olhar.
Rui Prata, Março 2006
Uma vibração do mundo
Um dia, “descobri” que a minha mulher era fotógrafa… Eu já sabia, como é evidente, do seu grande interesse pela fotografia. Mas só mais tarde, olhando os seus “trabalhos de casa” em sequências organizadas, me dei conta de haver neles uma coerência de propósito estético e uma expressão de personalidade muito própria. Atentas as circunstâncias, sou naturalmente suspeito, mas porque não falar, eu também, dessas imagens, se assisti à captação de muitas delas e sobre muitas delas troquei estimulantes impressões com a sua autora? Então aqui vai.
Por via de regra, a fotografia de Ana Gaiaz evita a figura humana, como se a fotógrafa tivesse uma espécie de pudor que impedisse de entrar na intimidade alheia, com receio de a violar. Se isto nos faz perder, com certeza, bons retratos em que a sua objectiva teria muito a contar-nos sobre a personalidade dos retratados, faz-nos também compreender que a intimidade por ela procurada é antes uma espécie de profundo recato das coisas e dos seres. De resto, advirta-se que toda a regra tem uma excepção. Uma das suas melhores fotografias, a explorar um contraponto formal e rigoroso de verticais entre filas de gente e fachadas com fieiras de aberturas em Veneza, tem a ver com uma hora de acqua alta na cidade dos Doges. Outra, ainda de Veneza, capta a tumultuária agitação dos pombos em plena Praça de S. Marcos.
O título da série que Ana Gaiaz expõe agora, Serenas solidões, vai muito no sentido corrente dessa expressão. São solidões que vivem numa tranquilidade surpreendida, a emergirem de um tempo e de um modo de ser não perturbados pela indiscrição fotográfica, rodeadas do seu próprio silêncio, por vezes profundamente embutido na pedra, por vezes com um toque de ironia que o momento proporcionou. Isso acontece com os santos embalados em celofane e como que preparados para uma efémera… eternidade, que Ana um dia encontrou numa dependência do Mosteiro de Alcobaça, ou com as bonecas metidas em armários do Museu do Brinquedo em Faro. A respeito destas últimas, escrevi uma quadra que tem mais a ver com o ineditismo da imagem obtida e com os processos da fotógrafa do que com as bonecas propriamente ditas: “guarda a infância num armário / para que o tempo vá brincando./ depois, se vês que é necessário, / tira-a de lá de vez em quando”.
Mas as solidões também acontecem com o porco que nos espreita, sobranceiro e inquiridor, pelo buraco de um muro feito da penedia áspera de Monsanto, ou com umas cadeiras esquecidas em plena campina e contrapostas a uns automóveis estacionados lá ao fundo, ou ainda com as esculturas de José Aurélio vistas em ambiente de atelier, autênticas explorações das “formas da forma”, indagações sobre a criação artística acumulada no espaço habitado pelo criador, procura de texturas, de ângulos e de especificidades luminosas.
Nesses e em muitos outros casos, a atitude é sempre a mesma: uma certeira disponibilidade para a contemplação activa, uma grande segurança na escolha do momento dessa intervenção e, depois, um persistente trabalho de laboratório a explorar o melhor efeito de cada película impressionada. Ana Gaiaz não procura grandes acrobacias conceptuais na sua maneira de abordar os objectos e muito menos as manipulações possíveis em laboratório ou no computador. Procura, sim, no reviver e no prazer da tradição oficinal de quem amplia as suas próprias imagens, o instante em que os silêncios do real se tornam mais eloquentes em face da sua objectiva e em que a fotografia a preto e branco se torna o meio mais idóneo para nos transmitir uma vibração, subtil e inesperada, do mundo em que vivemos.
Vasco Graça Moura, Março 2006