DIALOGUE WITH FEW IMAGES / PRÁTICA DE 14 FIGURAS.
EXHIBITION, S. MAMED GALLERY, MAY 2008
BAILE DE MÁSCARAS
Ao derramar o olhar por estas imagens de Ana Gaiaz, olho na procura, no desejo de ver e passo a saber que estas fotografias são uma inteligência, uma captura que consomem e esgotam um desejo. Ou ainda uma extensão do olhar como preferia Henri Cartier-Bresson. Ver mais intensamente, de outro modo, é o que se pede a um fotógrafo. E o que Ana Gaiaz nos dá. A imagem é um convite a olhar. Mas a captura da imagem tem uma gramática e uma ética, a sua legitimação estética como arte, como poética do espaço e do tempo, ali onde se perde tempo para ganhar espaço.
A fotografia, a grafia de Ana Gaiaz declina esse desejo (e o desejo é a distância tornada sensível) de uma conjunção impossível entre fugacidade e fixidez, uma simultaneidade visual do efémero e do eterno, tão breve e eterna como são todos os verdadeiros encontros. Sendo experiências capturadas, as fotografias constituem sempre um risco, um desafio, uma aventura. Instituem uma tensão na fronteira da abstracção com a representação, figuram um jogo entre a realidade e a ficção, simulam um baile de máscaras, entre a palavra e a imagem, na margem da verdade e do fingimento. Cada uma das máscaras fotografadas por Ana Gaiaz é uma citação, uma máxima ou um provérbio. Por vezes um aforismo. Como anunciava o antigo slogan do “Paris Match”: “O peso das palavras, o choque das fotografias”. A fotografia é sempre a imagem que alguém escolheu, fotografar é enquadrar e enquadrar é excluir. E das máscaras da Ana colhe-se uma certa nostalgia da terra prometida em que a melancolia adquire uma dimensão intensa infiltrada por um ângulo inédito, fruto do corpo a corpo da mulher com a máquina e da sua resistência ao logro tecnológico da fotografia. Mas em todas elas, cada uma a cada uma, se torna visível, táctil, palpável o apaixonado desejo de Ana Gaiaz ver claro mesmo nos labirintos da noite, nos descaminhos e fugas da sombra, no espesso e turvo silêncio das máscaras e das criaturas que elas desfiguram, dissimulam mas encerram e restituem em toda a sua fugaz eternidade.
É que Ana Gaiaz agarra-se à fotografia como um animal àquilo que ama. E com paixão, que é a única forma de conhecimento pois quem não gosta demais não gosta bastante. Aliás, o vício não é a posse, é o desejo, lá dizia o senhor de Montherlant nas suas “fontes do desejo”.
Na Foz do Douro, aos dias 18 de Janeiro de 2008.
MIGUEL VEIGA
A MARGEM IMPROVÁVEL DA MÁSCARA
Todo o fotógrafo joga sobre uma margem improvável. Dito de um modo breve, aquela que se enunciaria do seguinte modo: porque se haveria de destacar aquilo que um fotógrafo fotografa de tudo o mais que, diariamente, ocorre na convulsiva civilização de imagens em que vivemos, entre televisão, cinema, jornais, revistas e todos os meios que infinitamente multiplicam a abundância dessas mesmas imagens que não só rarefazem o real como o tornam cada vez mais transparente a si próprio e a nós, estarrecidos, de todo esse fundo de imagens que nos rodeiam? E, de outro modo, o que tornaria as suas imagens credoras de merecerem ser vistas quando destacadas do real de que partiram, como emanações de luz, em vez do próprio real?
Estas duas questões, creio, consubstanciam o ethos da fotografia, a haver um, o que fica mesmo assim por provar. Será pois à luz delas, indissociáveis de toda a prática fotográfica, que iremos interrogar as imagens ora propostas por Ana Gaiaz. Reflectindo antes do mais sobre o lugar de que elas partem para a sua abordagem ao “próprio” do fotográfico.
Há um regime geral das imagens que circulam. Elas flutuam sem fim (e sem princípio) como se por ondas, inundando-nos de informação visual. O dispositivo que essa intensíssima circulação gera – também pela sua velocidade e pela sua sedução – é um dispositivo de que se ausenta tudo aquilo que, longamente, fez da fotografia uma antecâmara da arte, um espaço singular capaz de gerar a sua própria história. E o que dele se ausenta é precisamente a possibilidade (e a necessidade) da contemplação.
Já não se pode dizer, diante dessa infinitude das imagens em circulação, que elas abrem para um ofício de ver, mas apenas que elas abrem precisamente para uma espécie de distracção, para um espaço difuso e em que nada se fixa, de que todo o acto de contemplação está ausente. Não é possível contemplar o que aceleradamente nos caustica os olhos de tão violentamente ir mudando a cada momento, num movimento imparável. Na civilização das imagens, não somos nós que fazemos zapping sobre elas, é o dispositivo da incessante circulação delas que as torna motivo de um zapping que sobre nós exerce um efeito lobotómico, hipnótico ou epiléptico de aceleração da percepção tornando-se impeditivo de todo o acto de contemplar. Assim, e a ser verdadeira esta afirmação, só permanecem na margem incerta deste dispositivo, e só por isso merecem, enquanto tal, figurar num outro mapa, que abre para outras significações, aquelas imagens que, não deixando embora de o ser, resistem todavia a esse dispositivo por procederem a uma espécie de arrêt, a uma interrupção, introduzindo aquele sentido do retard em vez do regard de que nos falava Duchamp há muitos anos atrás. Ou seja, destacam-se nesse outro mapa precisamente aquelas muito raras imagens que reabrem para a necessidade de contemplar. Assim com as de Ana Gaiaz. Precisamente porque elas inventariam, dissecam, fixam. Constroem entre si como que uma espécie de procedimento arqueológico que convoca para o olhar uma outra função, mais complexa em si mesma do que a da sedução ou a da sua perda nessa infinitamente fluida circulação das imagens de que só a distracção o salva.
Morbidamente às vezes, as imagens de Ana Gaiaz requerem, ou antes: exigem a atenção. Precisamente porque surpreendem o tempo naquilo em que o tempo ele mesmo já se suspendeu, neste caso no olhar desses pequenos objectos de encantamento, outrora adereços de espectáculo, e agora simples objectos perdidos de um destino activo e, como se resíduos de um tempo de fulgor, restos de um todo que se afastou para sempre.
Tal como nas imagens de ruas antigas, de ruínas ou de pedras que antes fotografou, o olhar de Gaiaz parece perder-se sobre o despojo e o vestígio, por forma a suscitar, através dele e da sua inapreensibilidade como um todo, o mecanismo activo da contemplação. Porque se é verdade que contemplar é o próprio de uma certa melancolia, e a ela desde sempre se associa, o contemplar não significa a mera passividade mas um acto, porque é uma forma de olhar para o mundo e de activar, relativamente a ele, o pensamento.
Do grego, aisthesis significava contemplar. E contemplar era acto de pensar. De contemplar as coisas com o próprio pensamento. E a melancolia não se associava apenas a essa significação que hoje lhe damos de uma tristeza alheada, mas antes a uma espécie de retiro em que o pensamento requeria um grande silêncio à sua volta para se escutar a si mesmo e procurar sobre as coisas um sentido de verdade. Era assim activa a contemplação. Ela transportou Dante pelos três anti-mundos a compreender o sentido esotérico das coisas que nos rodeiam e de que devemos cuidar neste mundo, porque nos devolvem a um conhecimento mais certo do que é.
Destacam-se assim estas imagens das coisas que antes foram (para retomar a segunda das questões) precisamente para que delas se perpetuem memórias de terem existido. E como dessas, aqui tornadas exemplares, de todas as que foram coerentes partes de um todo mas de que já só restam vestígios, como se para interrogar o que é desse todo, o que é do tempo que medeia o ter havido fulgor e o ter desaparecido aquilo que o suscitava.
As máscaras de adereço de Ana Gaiaz não são assim adereços, pois mais profundamente elas são vanitas. São evocações e invocações do tempo, como complexa tessitura de um ter sido que cede a um progressivo ser diverso, e interrogam o desaparecimento e a transformação que inevitavelmente nos situam diante da consciência aguda da nossa constitutiva perenidade.
Por tudo isso elas vão subtilmente deslizando o nosso olhar para uma margem em que esse olhar já se perdeu da beatífica distracção a que o movem as imagens todas e, a sós consigo mesmo, se confronta com o que realmente importa, e onde não há sedução mesmo se ainda permanece fascínio: aquilo que o tempo desenha, não nas coisas mas em nós mesmos.
E resumidamente diria que isso é o que faz de um autor um autor: olha para alguma coisa que antes já lá estava, mas surpreendendo nisso que olha aquilo que outros antes não souberam ver. Por ser capaz de nisso ver não apenas o que ali mesmo está mas também o que, através disso, como que se presentifica num espaço alegórico.
Alegorias do tempo que passa, as fotografias de Ana Gaiaz restituem-nos ao espaço sempre surpreendente em si mesmo do simples espanto de contemplar. Fora desse espaço em que se nos guarda apenas distracção, elas agem em nós um motivo de pensamento e de reflexão. A que nos conduz a nós mesmos, interrompendo o infinito fluir das imagens que nada significam. Abrindo-nos , assim, uma estreita porta sobre o real: aquela que se revela quando se levanta de sobre um rosto a máscara, para se erguer o olhar à sua margem improvável de um voltar a ver.
Bernardo Pinto de Almeida
Fevereiro 2008
AS BORBOLETAS
Num Novembro, creio que de 1992, estive no clube de Caça do Capé, na Guiné-Bissau.
Aí organizavam-se safaris fotográficos e via-se sobre o amanhecer hipopótamos a passar um rio ao fundo. Não fotografei caça grossa, nem as belíssimas paisagens africanas, episódios quotidianos, cenas do mercado local, os espanta-espíritos ou mesmo a amigável macaca Julieta.
Recordando esses dias, verifico que nem sequer sou caçadora de borboletas. À caçada do momento decisivo, como dizia Cartier-Bresson, prefiro a produção, os ambientes, a construção, a composição (por enquanto ainda sem manipulação digital), os bastidores e a respiração da criação. O sossego e a liberdade da escolha.
As borboletas mais antigas fixaram-se cedo no meu estômago, por males de timidez, as que não estão em mim, aparecem-me sob a forma do equilibrado objecto a fotografar. Por isso, nesta série, as minhas imagens não são mais do que o leve voo do olhar, qual mariposa borboleteando por cenários ultrapassados.
As mais recentes são adereços de cena. Sobretudo máscaras, mas também caras de bonecos tristes, bonecas sofisticadas, outras de expressão perturbada e histérica, tiaras aristocráticas, moldes de rostos adormecidos, calmos nos seus cabelos de arame, mascarilhas venezianas, ou de contornos esqueléticos da morte, monstros, animais fantásticos, plumas, chapéus elegantes e narizes grotescos, caras de espanto ou de indignação. Adereços oníricos ou brutais, que tudo permitem na dramaturgia do momento. E que finalizado o espectáculo, nos armazéns onde moram, seguem as suas vidas rotineiras. Deixando no pó dos palcos toda a agressividade e força da primeira vida.
São os adereços que ampliam a realidade, a beleza e o horror. O palco e as luzes acentuam a representação, as expressões, as imagens, as vozes, as cores, a música e tantas vezes as emoções, do lado de lá e do lado de cá.
O espectáculo que pode ser uma encenação épica ou um teatro de marionetas, “robertos” de praia ou teatro sério, criação de dança, criação de música ou de ópera é sempre perpetuado pela segunda existência da animação dos adereços.
Ana Gaiaz
Benfica do Ribatejo, 23.03.2008